A eleição de Javier Milei e os desafios de uma Argentina empobrecida | Política


Em dezembro de 2001 a Argentina viveu um dos momentos mais dramáticos de sua história. O iminente colapso da conversibilidade – o plano de estabilização monetária que estabelecia a paridade entre dólar e peso – levou dezenas de milhares de pessoas às ruas para protestar contra o confisco determinado pelo governo, o “corralito”. Em um momento já histórico, o então presidente Fernando de la Rúa fugiu da Casa Rosada em um helicóptero após renunciar, para incredulidade dos manifestantes que ocupavam a Praça de Maio.

Quase 22 anos depois, a população argentina parece ter finalmente encontrado uma figura que efetivamente expressasse o grito de ordem “que se vayan todos” que marcou aquele trágico dezembro. Javier Milei, economista de extrema direita e fundador do partido La Libertad Avanza (LLA) foi eleito presidente da Argentina ao derrotar o peronista Sergio Massa no segundo turno realizado no último domingo (19).

Os mais de dez pontos de vantagem entre Milei e Massa puseram em xeque mais uma vez a credibilidade dos institutos de pesquisa que prognosticavam um cenário de disputa acirrada, definida com margens estreitas, mas os indícios de que esse quadro estava equivocado eram visíveis desde o primeiro turno. Na votação de outubro, a soma dos votos dado a Milei e Patrícia Bullrich já superavam em cerca de 15% a votação de Massa.

Vitória em 20 das 23 províncias do país

Ao final, Milei conseguiu reter mais de 80% dos votos de Bullrich e ampliou sua base eleitoral em mais de 324 mil votos em relação ao desempenho da direita no primeiro turno. O resultado foi uma vitória contundente, com Milei derrotando Massa em 20 das 23 províncias do país, além da capital federal, Buenos Aires. Em tradicionais bastiões antiperonistas, como em Mendoza, a diferença foi superior a 40%, mas Milei venceu em cinco das oito províncias atualmente governadas pelo peronismo.

Entender a fundo as razões que conformaram que esta situação é um esforço que vai perdurar por alguns anos. Em uma análise preliminar, os resultados podem ser lidos como o fim esperado de um ciclo eleitoral atípico em que uma sociedade castigada por uma década de estagnação econômica e diferentes planos fracassados de estabilização decidiu castigar as forças políticas tradicionais, isto é, diante do repúdio às fórmulas conhecidas, abraça-se o desconhecido.

O fato marcante é que este descontentamento tenha encontrado em Javier Milei seu principal representante. Milei é uma figura agressiva, visivelmente despreparado, sem bases sociais firmes e que se tornou mais conhecido por idiossincrasias que pela defesa de um projeto ou um histórico de atuação política.

Campanha extremada e raivosa

Despido das vestes iluministas com que a direita tradicional argentina tenta disfarçar seu repúdio aos pobres, Milei apostou em uma campanha à sua imagem e semelhança: histriônica, extremada e raivosa, simbolizada na motosserra com que pretendia – metaforicamente, espera-se – destruir a “casta”, expressão pela qual se referia aos políticos do país. A isso, somaram-se meia dúzia de slogans (“dolarização”, “liberdade”, “acabar com Banco Central”), sobre os quais pouca explicação foi dada e construiu-se a campanha exitosa que o levou à Casa Rosada.

Entender esse fenômeno requer uma compressão ainda indisponível acerca de uma série de transformações em curso na sociedade argentina, que envolvem desde as mudanças operadas pela comunicação na era da internet ao avanço da precarização laboral e marginalização de amplos contingentes populacionais dos mercados e das redes de proteção estatal – formais.

Neste sentido, é preciso reconhecer que Milei mostrou uma capacidade de leitura da situação atual superior àquela demonstrada por seus oponentes. Ele compreendeu que a fadiga em relação ao governo não seria representada em fórmulas gradualistas, como propunha a coalização Juntos por el Cambio, e abria espaço para aceitação de uma proposta de terapia de choque, como a que ele anunciou ontem em seu discurso de vitória.

Nesse aspecto, a proposta de dolarização da economia se mostrou acertada do ponto de vista eleitoral ao gerar adesão de eleitores mais jovens, que não têm a memória do colapso da experiência dos anos 1990 e sentem diretamente os impactos de uma economia estagnada justo quando adentram no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, a ideia ressoa positivamente em segmentos das classes média e alta, saudosas dos tempos do “dame dos” – apesar do custo político envolvido.

Ao mesmo tempo em que é preciso ampliar o esforço de compreensão das raízes desse resultado é necessário refletir sobre suas implicações a partir de agora. Por mais expressiva que seja a vitória de Milei, ela representava um desafio menos significativo do que os que se afiguram para o presidente eleito a partir de 10 de dezembro.

“Mudanças precisam ser drásticas, sem meio termo”

O próprio Milei parece ter ciência de que sua agenda é menos factível do que ele fez supor durante a campanha. Durante seu discurso de vitória, Milei não fez referência à dolarização nem à extinção do Banco Central, mas deixou claro que o caminho que pretende seguir é o da terapia de choque, ao afirmar que “As mudanças que precisamos são drásticas. Não há lugar para gradualismo, não há lugar para meio-termo”.

A implementação dessa agenda de choque representa uma operação politicamente muito complexa. A aprovação de leis e projetos que exigem maioria qualificada exigirá acordos com setores do peronismo, mas o desafio não se encerra aí. A adoção da terapia de choque tende a produzir efeitos muito custosos em termos de emprego e renda, o que pode desatar ondas de protestos que podem comprometer a já difícil governabilidade do país. Neste contexto, a sustentação política de Milei dependerá da construção de uma rede de apoios que vá além dos votos na Câmara e no Senado, e se afirme também nas ruas.

Expectativa de moderação, como Trump e Bolsonaro, pode não acontecer

Em que medida Milei conseguirá fazer essas articulações sem perder sua legitimidade antissistema é uma incógnita. Outra questão em aberto, e potencialmente mais grave, diz respeito aos impactos da presidência de Milei sobre a institucionalidade democrática argentina. Neste momento, parece existir nos círculos tradicionais do país a expectativa de que o presidente eleito será moderado, contido, pelo peso do cargo, e que seu tom virulento é mais um discurso de candidato do que expressão de um temperamento.

Contudo, uma das lições a serem extraídas das experiências de Donald Trump e Jair Bolsonaro é a de que expectativas de moderação mostram-se frustradas com políticos de extrema direita. A noção de que o Partido Republicano, ou as Forças Armadas, conteriam Trump e Bolsonaro, respectivamente, não apenas estavam erradas, como o que se viu foi uma radicalização desses atores, que aderiram majoritariamente aos projetos autoritários de seus líderes.

Negar o DNA autoritário do projeto de Milei, como têm feito a direita tradicional argentina, é fechar os olhos ao óbvio para não enfrentar as próprias contradições. No comitê de campanha, os cartazes com o rosto de Milei eram acompanhados da frase “a única solução”. Ora, se uma figura se arvora o status de única solução para os problemas do país, automaticamente todos aqueles se colocam contra essa solução passam a ser parte do problema.

De que maneira o novo presidente argentino pretende lidar com esse cenário é algo que descobriremos em breve, mas as pistas oferecidas por Milei e pela história argentina sugerem que a vibrante capacidade de mobilização que distingue a sociedade argentina pode ser mais necessária que nunca.

*Pesquisador do INCT – INEU e do GEDES, Universidade Estadual Paulista (Unesp)



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