- Author, Paul Adams e David Gritten
- Role, BBC News em Jerusalém e em Londres
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Vários países se juntaram à Organização das Nações Unidas (ONU) para cobrar uma investigação sobre as mortes de palestinos enquanto tentavam desesperadamente obter ajuda básica no norte de Gaza.
Diversos países emitiram comunicados repudiando o episódio. O governo brasileiro mencionou que “a humanidade está falhando com os civis de Gaza” e que “é “hora de evitar novos massacres” (leia mais abaixo).
De acordo com a agência AP, a Turquia se juntou à Arábia Saudita, ao Egito e à Jordânia na condenação dos disparos das forças israelenses contra os palestinos que aguardavam a entrega de ajuda. Por meio de seu Ministério de Negócios Estrangeiros, a Turquia chamou o caso de “mais um crime contra a humanidade”.
Pelo menos 117 pessoas morreram e 760 ficaram feridas no incidente, disse o porta-voz do Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas, Ashraf al-Qudra, em comunicado na tarde de quinta-feira (29/2).
Multidões de civis que esperavam ajuda cercaram um comboio de caminhões com doações depois que ele passou por um posto de controle militar israelense a oeste da Cidade de Gaza.
Os militares de Israel disseram que as tropas dispararam tiros de advertência, mas não atingiram os caminhões. Segundo eles, muitos dos mortos foram pisoteados ou atropelados.
O Hamas rejeitou o relato de Israel, dizendo que havia evidências “inegáveis” de “disparos diretos contra cidadãos”.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, condenou o incidente e disse que “civis desesperados” precisam de ajuda urgente.
“Reitero o meu apelo a um cessar-fogo humanitário imediato e à libertação incondicional de todos os reféns”, declarou Guterres.
Nas redes sociais, Guterres ainda disse que “os civis desesperados em Gaza precisam de ajuda urgente, incluindo aqueles no norte, onde a ONU não consegue fornecer ajuda há mais de uma semana.”
O Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas, classificou o incidente como um “massacre”.
O Hamas acusou Israel de disparar contra civis, mas Israel disse que a maioria morreu esmagada depois de disparar tiros de advertência.
Na quinta-feira, as críticas internacionais a Israel aumentaram, com o presidente francês, Emmanuel Macron, que afirmou que os civis foram “alvos de soldados israelenses”.
O chefe da política externa da União Europeia, Josep Borell, descreveu o incidente como uma “carnificina totalmente inaceitável”.
Na sexta-feira, França, Itália e Alemanha pediram uma investigação independente sobre essas mortes.
O Conselho de Segurança da ONU marcou uma reunião de emergência a portas fechadas para discutir o incidente. Durante o encontro, a Argélia – o representante árabe no órgão – apresentou um projeto de declaração culpando as forças israelenses por “abrirem fogo”.
Embora 14 dos 15 membros do Conselho tenham apoiado a moção, os EUA a vetaram, de acordo com a agência de notícias AP, que cita o embaixador palestino na ONU, Riyad Mansour. O enviado dos EUA, Robert Wood, disse que os fatos do incidente permanecem obscuros.
Anteriormente, o presidente dos EUA, Joe Biden, expressou preocupação de que o incidente complicaria os esforços de negociação para um cessar-fogo temporário na guerra entre Israel e o Hamas. A França disse que “o disparo de soldados israelenses contra civis que tentavam ter acesso a alimentos” era “injustificável”.
O Hamas alertou que as negociações no Catar para tentar garantir um novo cessar-fogo, juntamente com a libertação dos reféns israelenses que mantém, podem estar comprometidas agora.
O governo brasileiro também se pronunciou, por meio de uma nota divulgada pelo Ministério das Relações Exteriores.
“As aglomerações em torno dos caminhões que transportavam a ajuda humanitária demonstram a situação desesperadora a que está submetida a população civil da Faixa de Gaza e as dificuldades para obtenção de alimentos no território. Trata-se de uma situação intolerável, que vai muito além da necessária apuração de responsabilidades pelos mortos e feridos de ontem”, diz o pronunciamento.
O governo brasileiro também afirmou que a inação da comunidade internacional diante da tragédia humanitária em Gaza “continua a servir como velado incentivo para que o governo Netanyahu continue a atingir civis inocentes e a ignorar regras básicas do direito humanitário internacional”
“O governo Netanyahu volta a mostrar, por ações e declarações, que a ação militar em Gaza não tem qualquer limite ético ou legal. E cabe à comunidade internacional dar um basta para, somente assim, evitar novas atrocidades. A cada dia de hesitação, mais inocentes morrerão”, diz ainda a nota, que pede a implementação das medidas cautelares emitidas pela Corte Internacional de Justiça, para que Israel tome todas as medidas ao seu alcance para impedir a prática de todos os atos considerados como genocídio.
Imagens aéreas dramáticas divulgadas pelos militares israelenses mostram milhares de pessoas dentro e ao redor dos caminhões, enquanto vídeos das consequências postados nas redes sociais mostraram alguns dos mortos carregados em caminhões de ajuda vazios e em uma carroça puxada por burros.
O incidente aconteceu horas antes de o Ministério da Saúde local anunciar que mais de 30 mil pessoas, incluindo 21 mil crianças e mulheres, tinham sido confirmadas como mortas em Gaza desde o início do conflito.
Cerca de 7 mil outras pessoas foram dadas como desaparecidas e 70.450 foram tratadas de ferimentos nos últimos quatro meses, de acordo com o ministério.
“Isso é profundamente chocante porque se somarmos o número de pessoas feridas e o número de pessoas desaparecidas temos mais de 100 mil pessoas, o que representa 5% da população”, disse Philippe Lazzarini, chefe da agência da ONU para refugiados palestinos (Unrwa), à BBC.
A ONU também alerta para uma fome iminente no norte do território, onde cerca de 300 mil pessoas vivem com pouca comida ou água potável.
Os militares israelenses lançaram uma campanha aérea e terrestre em grande escala para destruir o Hamas – que é considerado uma organização terrorista por Israel, pelo Reino Unido e outros – depois dos seus homens armados terem matado cerca de 1.200 pessoas no sul de Israel, em 7 de outubro, e levado outras 253 pessoas para Gaza como reféns.
O incidente desta quinta-feira ocorreu pouco depois das 4h, horário local, passando por um posto de controle militar israelense na rua Rashid, que segue ao longo da costa do Mediterrâneo. Fontes palestinas informaram que a localização era a rotatória de Nabulsi, no extremo sudoeste da Cidade de Gaza.
Um comboio de 30 caminhões que transportava doações do Egito dirigia-se para norte ao longo do que as Forças de Defesa de Israel (IDF) descreveram como um “corredor humanitário” quando foi cercado por civis, com pessoas subindo nos veículos.
“Alguns começaram a empurrar violentamente e até atropelar outros habitantes de Gaza até a morte, saqueando os suprimentos humanitários”, disse o porta-voz principal das FDI, o contra-almirante Daniel Hagari. “O infeliz incidente resultou em dezenas de habitantes de Gaza mortos e feridos.”
Os tanques israelenses, disse ele, “tentaram cautelosamente dispersar a multidão com alguns tiros de advertência”, mas recuaram “quando as centenas se tornaram milhares e as coisas saíram do controle”.
“Nenhum ataque das FDI foi conduzido contra o comboio de ajuda”, disse ele, insistindo que os militares israelenses estavam tentando ajudar os veículos a chegar ao seu destino.
Uma testemunha palestina, em declarações à BBC, descreveu o pânico na multidão e entre os motoristas, que tentaram avançar. A maioria dos que morreram foram atropelados, acrescentou a testemunha.
Ramzi Mohammed Rihan ficou ferido e descreveu à BBC o que viu. “Fomos informados de que um carregamento de farinha chegaria pela rua Al-Nabulsi e que não haveria tiroteio”.
“Fomos buscar farinha para alimentar os nossos filhos. Fomos à rua Nabulsi e antes dos caminhões chegarem houve tiroteio”.
“Quando os caminhões entraram, fomos em direção a eles e, enquanto tentávamos tirar o primeiro saco de farinha do caminhão, eles começaram a atirar em nós”.
Rihan disse que foi levado para o hospital em uma carroça e que suas radiografias foram adiadas devido à falta de eletricidade.
Khaled al-Tarawish também ficou ferido e disse que a sua cirurgia também foi adiada devido à falta de combustível no Hospital al-Awada.
“Fui à rua Nabulsi buscar um saco de farinha”, disse ele. “Por causa da multidão, corri para baixo do carro, fui ao hospital Awda, onde me disseram que eu precisava fazer uma operação, mas como não havia óleo diesel, me disseram que a operação seria realizada três dias depois.
“Tudo o que quero é fornecer óleo diesel ao hospital para que eu possa fazer a operação e receber o tratamento”.
Dezenas de vítimas em estado grave foram levadas para o Hospital al-Shifa, na cidade de Gaza. Médicos afirmaram não conseguir lidar com o número e a gravidade dos casos.
Um homem no hospital que segurava o corpo de seu amigo morto, Tamer Shinbari, disse à BBC que foi à rotatória de Nabulsi na esperança de conseguir um saco de farinha para sua família.
Ele disse que os soldados israelenses abriram fogo “e o caminhão de ajuda atropelou os corpos”.
Todas ou a maioria das vítimas tratadas em dois outros hospitais, Kamal Adwan e al-Awda, foram declaradas pelas autoridades como feridas por bala ou estilhaços.
O comboio de 30 caminhões que transportavam ajuda egípcia se dirigia para norte ao longo do que as FDI descreveram como um “corredor humanitário” que afirmavam que estava sendo protegido pelas forças israelenses.
‘Civis desesperados’
As FDI disseram em comunicado que “cada vítima civil é uma tragédia”.
“Apesar das circunstâncias muito difíceis (causadas pela decisão do Hamas de entrar em guerra contra Israel), continuamos trabalhando para facilitar a entrega de ajuda humanitária aos civis em toda a Faixa de Gaza”, acrescentou.
“Vamos aprender com esse duro incidente para tentar encontrar melhores soluções para a transferência de ajuda para aqueles que dela necessitam.”
Mas o Hamas e o presidente palestino, Mahmoud Abbas, baseado na Cisjordânia ocupada, culparam as forças israelenses pelo que chamaram de “massacre hediondo”.
“A morte deste grande número de vítimas civis inocentes que arriscaram a sua subsistência é considerada parte integrante da guerra genocida cometida pelo governo de ocupação contra o nosso povo”, disse Abbas num comunicado, acrescentando que Israel tem “total responsabilidade”.
Um porta-voz do secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que o líder da organização “condenou” o incidente.
“Os civis desesperados em Gaza precisam de ajuda urgente, incluindo aqueles no norte sitiado, onde as Nações Unidas não conseguem entregar ajuda há mais de uma semana”, disse Stephane Dujarric, acrescentando que Guterres reiterou o seu apelo a “uma ajuda humanitária imediata”, cessar-fogo e a libertação incondicional de todos os reféns.
O norte de Gaza sofreu uma devastação generalizada depois de ter sido o foco da primeira fase da ofensiva terrestre israelense.
O país esteve em grande parte isolado da assistência humanitária durante vários meses, apesar de alguns esforços por parte das agências de ajuda da ONU.
Na semana passada, o Programa Alimentar Mundial disse que foi forçado a suspender as entregas de ajuda ao norte de Gaza depois que o seu primeiro comboio em três semanas ter sido cercado por multidões de pessoas famintas perto do posto de controle militar israelense em Wadi Gaza, e depois ter enfrentado tiros na Cidade de Gaza.
Outro comboio enfrentou o que chamou de “completo caos e violência devido ao colapso da ordem civil”. Vários caminhões foram saqueados no centro de Gaza e um motorista foi espancado.
Na terça-feira, um alto funcionário humanitário da ONU alertou que pelo menos 576 mil pessoas em toda a Faixa de Gaza – um quarto da população – enfrentavam níveis catastróficos de insegurança alimentar e corriam o risco de fome.
Ele também alertou que uma em cada seis crianças com menos de dois anos de idade no norte sofria de desnutrição aguda.
Na quarta-feira, o Ministério da Saúde de Gaza disse que seis crianças morreram de desidratação e desnutrição em hospitais no norte de Gaza. Duas das mortes ocorreram em al-Shifa e quatro em Kamal Adwan, acrescentou.
Com reportagens de Thomas Mackintosh, Paul Adams e David Gritten