O calor aumenta e ameaça nossas crianças. É urgente protegê-las


Há 20 anos a agenda ambiental faz parte da minha trajetória acadêmica e profissional. Eu sei que, definitivamente, ninguém gosta de levar bronca, mas não se trata disso. Este artigo se propõe a relacionar o tema mais urgente do nosso tempo à população mais impactada desta equação: mudança do clima e primeira infância. O que se sabe e como podemos fazer mais.

Sabemos que as crianças pequenas são as mais afetadas pelas mudanças climáticas, embora este seja um recorte raro de ver em pauta. A exposição de gestantes e de crianças na primeira infância (fase que vai até os 6 anos) ao calor excessivo, como o que temos vivenciado, pode causar partos prematuros, nascimento de crianças com baixo peso, prejudicar o desenvolvimento infantil e o sistema imunológico. A afirmação vem da Universidade Harvard, em estudo recente do Centro de Desenvolvimento Infantil, mostrando o tamanho desse risco e disparando um sinal de alerta para estruturarmos formas de proteger nossas infâncias desses eventos.

O estudo, que faz a análise de uma série de pesquisas sobre o impacto do calor no corpo e em seu desenvolvimento, enfatiza que os efeitos mais negativos de altas temperaturas acometem crianças na primeira infância e na gestação. Uma das razões para isso é que o corpo da criança pequena processa o calor de forma diferente do de crianças mais velhas e adultos. Por exemplo, os pequenos transpiram muito menos. E a transpiração é uma das principais formas de o organismo esfriar a temperatura do corpo. Se o corpo é incapaz de regular sua própria temperatura de forma adequada, o excesso de calor pode afetar o funcionamento dos rins e o desenvolvimento muscular, levar a convulsões e, em casos extremos, ao coma com risco de morte. Esses são os efeitos imediatos.

No longo prazo, a exposição ao calor excessivo pode comprometer o desenvolvimento infantil com efeitos diretos no processo de aprendizado, no sistema imunológico, na saúde mental e na qualidade do sono (que é essencial para o crescimento e o desenvolvimento saudável).

O estudo mostra que, durante a gravidez, altas temperaturas podem reduzir o fluxo de sangue na placenta, causar desidratação e inflamação, o que leva ao risco elevado de parto prematuro e do nascimento de bebês com baixo peso, considerado um indicador absolutamente relevante no desenvolvimento.

A temperatura de todo o planeta tem aumentado. O ano de 2024 no Hemisfério Sul deve ser ainda mais quente do que já foi o de 2023. A previsão é da Xaida (’eXtreme events: Artificial Intelligence for Detection and Attribution), um consórcio integrado por 16 centros de pesquisa climática europeus. Em julho de 2023 foi registrada a maior temperatura da Terra desde 1940, quando há os primeiros dados sobre isso. Nem mesmo quem vive nas áreas mais frias está a salvo do calor que faz mal à saúde. Isso porque a classificação de calor excessivo muda de acordo com o contexto. Essa é a classificação dada a temperaturas mais altas do que aquelas com que a população de um local está habituada. Pessoas que moram em áreas mais frias e secas sofrem com o aumento de temperatura tanto quanto aqueles que, como a maioria dos brasileiros, estão em áreas tropicais e úmidas.

O corpo humano está programado para manter temperaturas constantes independentemente do ambiente. O estudo chama a atenção, no entanto, para o fato de que a exposição regular a temperaturas bem mais altas que o normal, como vem acontecendo, pode estar sobrecarregando o organismo, que constantemente trabalha para manter o equilíbrio. Em bebês e crianças pequenas, essa sobrecarga pode ocorrer muito mais rapidamente e com efeitos mais sérios, que perdurarão por toda a vida.

O calor excessivo é uma realidade e ele afeta nossas infâncias. Sabendo disso, como podemos implementar uma estratégia similar à adotada em conflitos para protegê-las primeiro?

É essa pergunta que nós, como sociedade, temos de manter em mente e responder com prontidão para efetivamente evitar a exposição prolongada de gestantes e crianças pequenas a altas temperaturas. Experiências em diversos locais do mundo mostram que, neste processo, é fundamental contar com a participação de líderes locais que conhecem as comunidades. Eles sabem quais as maiores dificuldades que a população enfrenta no calor; onde há falta d’água, pouca sombra, moradias montadas com materiais com pouca refrigeração (como placas metálicas) e aglomeração de pessoas. É importante focar também nas unidades escolares e de saúde com maior concentração de crianças pequenas para priorizar os investimentos para esses públicos. Os Estados devem apoiar os municípios nessas ações. À União cabe formular e pôr em curso ações para mitigar as mudanças climáticas. Empresas e órgãos públicos precisam ser parte corresponsável no cumprimento de metas que o País assumiu, com condicionalidades e penalidades ativas. E a sociedade civil organizada pode contribuir ao monitorar ações, participar do debate público e construir soluções inovadoras.

Nossas crianças já são as mais afetadas hoje, e isso só vai piorar na medida em que a crise climática não for revertida. Por ora, fica o alerta trazido por esses dados e o convite para, juntos, colocarmos em prática ações que resgatem o sentido de urgência na proteção de nossas infâncias e da vida na Terra.

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CEO DA FUNDAÇÃO MARIA CECILIA SOUTO VIDIGAL, YOUNG GLOBAL LEADER DO FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL, É PRESIDENTE DO CONSELHO DO INSTITUTO ESCOLHAS



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