O que acontece na agricultura argentina, pilar do superávit e dólar


GettyimagesGettyimages

Gettyimages

Colheita de soja em Balcarce, Buenos Aires, na província Argentina.

Esforço e um pouco de sorte fazem parte da receita apresentada pelo governo argentino para atingir a meta de superávit primário estabelecida no acordo fechado em janeiro com o FMI (Fundo Monetário Internacional). O esforço deve estar acompanhado de um rigoroso ajuste nas contas do Estado, aliado a um comportamento mais severo de contenção na emissão de moeda.

  • Siga a Forbes no WhatsApp e receba as principais notícias sobre negócios, carreira, tecnologia e estilo de vida

Desde o início do ano, o caminho tem sido pavimentado por um superávit financeiro de US$ 518,4 bilhões (R$ 2,5 trilhões, na cotação atual), produto de um superávit primário de US$ 2 trilhões (R$ 9,9 trilhões) e do pagamento de juros da dívida pública, que atingiu US$ 1,4 trilhão (R$ 7,4 trilhões). A economia tirou proveito desse resultado e o aproveitou ao máximo.

A receita total do setor público na Argentina atingiu US$ 6,1 trilhões (R$ 30,5 trilhões) em janeiro, um aumento de 256,7% em relação ao mesmo período do ano anterior. A arrecadação cresceu 256,9%, o que se explica tanto pelo desempenho do comércio exterior como da atividade econômica doméstica. No primeiro caso, os impostos sobre as exportações cresceram 574,3%, enquanto nas importações aumentaram 377,3% em relação ao ano anterior.

Leia também:

Os impostos gerados pelas exportações são fundamentais para o ano fiscal. Os altos e baixos na retenção de impostos sobre produtos agrícolas, apesar das promessas no meio da campanha presidencial para reduzi-los, expuseram a sede do governo por moeda estrangeira.

É importante lembrar a importância do complexo de grãos oleaginosos, incluindo o biodiesel e seus derivados, no total de exportações da Argentina — o segmento contribuiu, em 2022, com 48% do total das vendas externas, segundo dados do Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da República).

O principal item de exportação do país é o farelo de soja (14,2% do total), subproduto gerado pelo complexo agroindustrial, que atualmente tem uma capacidade ociosa de quase 50%, de acordo com dados da Ciara (Câmara da Indústria de Óleos da República Argentina) e do CEC (Centro de Exportadores de Cereais). O segundo produto mais exportado em 2023, de acordo com o Indec, foi o milho (11%), e o terceiro, o óleo de soja (6,9%).

Hoje, as autoridades reconhecem a necessidade de o agronegócio fazer um esforço para estabilizar a economia e, finalmente, dar um golpe final nos impostos que põem um freio de mão na rentabilidade do setor, responsável por grandes lucros quando os ventos sopram a seu favor, mas com uma ampla gama de riscos imprevisíveis.

A sorte que se pensava ter no início do governo de Javier Milei, quando ainda se projetava uma safra recorde, começou a desmoronar com as altas temperaturas que acometeram grande parte do período de verão. Além do calor e das pragas, há um efeito externo: a queda internacional dos preços dos grãos.

“Os dólares do campo não vão estar no nível esperado. Os preços do trigo, do milho e da soja caíram consideravelmente desde junho de 2022. A queda da soja seria em torno de 45%, enquanto a do trigo e do milho ultrapassa 50%. Isso deixa o agricultor com poucas chances de rentabilidade, num contexto de altos impostos retidos na fonte, taxas de câmbio diferenciadas para exportações e importações, mau tempo, altos aluguéis e inflação galopante”, afirma o economista Salvador di Stefano. Segundo ele, em 2022 a renda do campo foi de US$ 46,5 bilhões (R$ 231,5 bilhões); em 2023, US$ 23,5 bilhões (R$ 117 bilhões); e, em 2024, deve ficar em menos de US$ 33 bilhões (R$ 164,3 bilhões). “É um cenário de baixo rendimento”, afirma o especialista.

DivulgaçãoDivulgação

Divulgação

O economista Salvador di Stefano diz que dólar do campo não estão no valor esperado

Um pouco mais otimista é a previsão do Ieral (Instituto de Estudos sobre a Realidade Argentina e Latino-Americana), indicando que as exportações líquidas de produtos agrícolas devem gerar algo próximo de US$ 37,5 bilhões (R$ 186,7 bilhões) na safra de 2023/24 e de US$ 35,5 bilhões (R$ 176,8 bilhões) em 2024. Isso representaria uma melhora de US$ 11,3 bilhões (R$ 56,2 bilhões) e US$ 7,5 bilhões (R$ 37,3 bilhões), respectivamente.

Aquém das expectativas do governo, os preços internacionais das commodities começaram o ano em baixa. De acordo com o Ieral, no caso da soja, a tonelada em Chicago passou de mais de US$ 550 (R$ 2,7 mil) no início de 2023 para US$ 479 (R$ 2,3 mil) em dezembro de 2023 e US$ 455 (R$ 2,2 mil) em janeiro de 2024. Segundo as cotações futuras, o declínio não encontrará limite tão cedo: a oleaginosa deve seguir esse caminho no primeiro trimestre, indo até setembro, e fechar em US$ 413 (R$ 2 mil) a tonelada até o final deste ano.

Se confirmado, esse cenário de preços implicará uma perda de 18% no valor real da oleaginosa em 2024, em comparação a 2023, e de 24% a 28% em comparação com os picos de 2021 e 2022. A corretora de commodities Allaria indica que, segundo as estimativas do final de fevereiro, as perspectivas de safras abundantes na América do Sul continuam a pesar sobre a formação dos preços dos grãos, levando o milho e a soja às mínimas de três anos.

Mesmo nesse cenário de preços internacionais enfraquecidos, as exportações das empresas de cereais e oleaginosas reunidas na Ciara-CEC representaram receitas de US$ 1,5 bilhão (R$ 7,47 bilhões) em janeiro, 64% acima do ano anterior e 22% acima de dezembro de 2023.

De forma mais ampla, uma análise do CAA (Conselho Agroindustrial Argentino) indica que o setor agroindustrial exportou 21% a mais em janeiro do que no mesmo período de 2023 e 27% a mais do que em dezembro, um adicional de US$ 698 milhões (R$ 3,47 bilhões). Os complexos com maior crescimento relativo entre safras foram os de algodão, trigo e grãos. Já os de trigo, milho e girassol tiveram a maior alta na comparação anual, enquanto os complexos de soja, aves e arroz foram os que mais atenuaram os ganhos do setor.

“Mesa de Enlace” e acordos comerciais

Com a certeza de que o caminho para o futuro está na abertura para o mundo, entidades rurais argentinas estão avançando com uma agenda de atuação política. A Mesa de Enlace (frente do agronegócio formada em 2008 contra o aumento dos impostos) não está estreitando os laços somente com Fernando Vilella, o secretário de bioeconomia do país, com quem se uniu para pedir o fim do aumento das tarifas e conseguiu emplacar algumas das suas exigências, mas também com Diana Mondino, a chanceler da Argentina.

Entre os assuntos em pauta estão as consequências da entrada em vigor da regulamentação da UE (União Europeia) que exige produtos livres de desmatamento. No último trimestre do ano passado, três navios transportando cerca de 46 mil toneladas de soja livre de desflorestamento deixaram os portos argentinos rumo à Espanha e à Irlanda.

Esses embarques foram o resultado de testes-piloto da implementação, em 2022, do Protocolo Visec, que monitora desde então a produção de grãos na Argentina. As exigências do acordo estão alinhadas com os requisitos do Regulamento nº 1.115/2023 da União Europeia sobre produtos livres de desmatamento, que entrará em vigor em 30 de dezembro de 2024. O objetivo é consolidar mercadorias provenientes de campos que não foram desmatados após dezembro de 2020 e cujos grãos foram rastreados e selecionados, respectivamente, ao longo de todo o fluxo da cadeia produtiva, do campo ao porto.

GettyGetty

Getty

Navio chega a Rosário: exportações do agro devem atingir R$ 37,5 bilhões na safra de 2023/24

Outra questão levantada pelos produtores é o status das negociações do Acordo de Parceria Estratégica Mercosul-UE. A questão está provocando tensões em ambos os lados do Atlântico. A UE teve que começar a se comprometer com a rigidez do Pacto Verde, aprovado em dezembro de 2019, especialmente no capítulo ligado ao campo, mas removendo a meta de redução das emissões agrícolas do seu roteiro climático para 2040.

A parte que mais preocupa e exalta os agricultores argentinos está relacionada à abertura das importações para o país, que, segundo eles, gera desigualdade na produção e uma diferença de preços que os afeta. O acordo comercial UE-Mercosul ainda não conseguiu se cristalizar, em parte devido à exigência de a América do Sul aderir às medidas climáticas promovidas pela Europa.

Enquanto os produtores ajustam seus números à nova realidade — como a alta acentuada dos insumos e preços atrelados ao dólar diante da desvalorização das commodities, danos causados pelas altas temperaturas e retenção de impostos sobre os itens mais produtivos —, o governo começa a jogar uma corda em torno do seu principal aliado, não só para receber divisas, mas também em contrapartida ao forte apoio que vem manifestando desde o início da campanha presidencial.

Assim, por exemplo, o BCRA (Banco Central da República Argentina) suspendeu o controle sobre a compra de dólares — o chamado “cepo” — do MEP (categoria de dólar criada em 2022 para aumentar a captação da moeda) para as empresas que venderam dólares de soja. De acordo com Di Stefano, a medida gerou muitos problemas para cooperativas, trades e outras empresas do setor agrícola que buscavam cobertura no dólar financeiro. A resistência política do campo está sendo posta à prova diante da mudança de governo.

*Reportagem publicada originalmente na Forbes Argentina





Source link